Considerações sobre o conceito de pré-história, civilização e cultura.



Introdução

Muitas vezes empregamos certas palavras, mas não sabemos de fato qual seu significado correto, apenas repetimos aquilo que achamos que sabemos o que significa. Acriticamente passamos adiante uma ideia, que muitas vezes podem ser nocivas, ou carregadas de preconceito. Conceitos como pré-história, civilização e cultura foram ressignificados ao longo do período da nossa disciplina, que, depois de todo o aprendizado me incomoda bastante, se chama pré-história.
Para compreendermos melhor o que de fato significam certos conceitos, e como e onde devem ser aplicados, cabe um aprofundamento teórico, e também etimológico dos mesmos, garantindo que saibamos de fato usar essa ferramenta, que são as palavras e seus significados. E para além disso devemos ser críticos e buscarmos propor novas abordagens e significados que tragam consigo os novos valores atuais mais justos e sem juízo de valor, rompendo com visões e usos preconceituosos, ou talvez até abolindo certos conceitos.

Se existe pré-história, coitado do pré-historiador.

A provocação do título é para revelar a inconsistência do termo, pois obviamente não existe um pré-historiador, existe um arqueólogo, que produz uma narrativa arqueológica a partir dos vestígios materiais que possam nos informar acerca dos homens, seja na história do passado, seja na história do presente. A partir dessas narrativas um historiador, veja bem, historiador, não um pré-historiador, faz o seu trabalho, com suas metodologias e aportes teóricos.
Obviamente também, é muito notório que o arqueólogo tem muito mais exclusividade para empreender seus esforços, cada vez mais em direção ao passado, onde as narrativas históricas são escassas, como antes da invenção da escrita por exemplo. Note que aqui já uso a ideia de história de forma plena e irrestrita. Cabe ressaltar, que, de acordo com minhas reflexões, fazer história, é comum, e talvez até trivial ao ser humano ao longo do tempo, mas o que importa ao historiador, é a capacidade dessa narrativa histórica chegar até ele. Uma sociedade que não dominava a escrita, mas tinha longas e admiráveis narrativas históricas orais sobre sua origem e suas conquistas, se perdeu assim que esse povo sucumbiu. Ali o historiador não chega, mas a história ali existiu, e era tão viva e rica quanto os escritos de Heródoto. E nesse momento entra em ação o arqueólogo, buscando, no geral, naquilo que foi descartado, naqueles vestígios a princípio banal, entender como viviam aquele povo.
Mas para entendermos melhor a problemática, vamos para a Europa do ano de 1450. Com todos os avanços proporcionados pelo mercantilismo e as grandes navegações e suas descobertas, a Europa se coloca na modernidade; e se eles se reconheciam na vanguarda da modernidade, logo identificaram que anteriormente havia um mundo antigo, e com o aprofundamento do conhecimento, foi notado um conjunto de dados históricos que apontavam para uma idade média. Assim temos: antiguidade clássica, idade média, e modernidade. Mas para além da antiguidade clássica, que podia ser compreendida através de inúmeras narrativas históricas, havia muitos outros vestígios de povos, que eram praticamente indecifráveis, e impossíveis à época de serem compreendidos, e logo tudo isso foi tachado de pré-história, justamente num contexto eurocêntrico, que colocava tudo que não era europeu, ou greco-romano, como selvageria de grupos não-civilizados. Nesse contexto etnocêntrico surge o conceito de pré-história.
Continuando, o termo pré-história, como algo que venha antes da história, não faz sentido em si mesmo, já que não existe nenhuma coisa sequer, seja real, ou abstrato, que não possua inicio, meio e fim, e que em suma não possua história desde seu início. Qualquer coisa para a qual você esteja olhando agora, por mais insignificante e trivial que seja tem uma história esperando para ser contada. Não há como dizer que a história de algo comece depois, ela começa junto.
E falar em pré-história como história antes da história é criar uma divisão, tão arbitrária, quanto elitista, segregadora, e desnecessária, separando a história, como se a história a partir de certo ponto pudesse ser mais importante que aquela do outro lado deste ponto imaginário.
E se toda essa discussão em torno da pré-história, dentro de uma perspectiva europeia já leva agente a querer abolir o termo, imagine quando transportamos esse termo, de maneira acrítica para as Américas. Nos dá vontade de lançarmos uma cruzada contra a pré-história. Se pré-história é tudo que vem antes da escrita, o que fazer com os ameríndios? Alguns dominavam a escrita, outros não. Eles viviam de fato num limbo pré-histórico e foram salvos pelos europeus? Claro que não, eles não viviam na pré-história, simplesmente por quê não existe pré-história. Para além de todas as formas de subjugar os povos das Américas, fazer persistir o pré-histórico discurso da pré-história é uma delas. Com esse último parágrafo posso ser acusado de fazer uso justamente daquilo que estou abominando, mas isso é apenas mais uma provocação, pra fazer refletir. A provocação consiste em usar os juízos de valores embutidos no termo, para avaliar o próprio termo. Soa mal certo? Com isso lembrei de um ditado popular que diz: pimenta nos olhos dos outros é refresco.
Sigo com a provocação dizendo que o termo pré-história deve ficar exatamente na pré-história, seu uso deve ficar lá naquela época quando, embriagados por uma visão eurocêntrica o cunharam, segundo seus valores à época.

Civilização ou barbárie.

A um tempo na internet vi um meme, onde havia a foto de uma criança indígena numa canoa em um rio limpíssimo e belo, e do lado uma criança de uma grande cidade no meio de um esgoto a céu aberto em alguma cidade do Brasil, o indiozinho com a legenda de selvagem, e a criança da periferia com a legenda de civilizado. Se as coisas são como o meme diz, quero ser selvagem com toda certeza. Mas afinal o que é ser civilizado, o que é ser selvagem?
Civilidade, civilização, cultura. São conceitos interligados, originários da Europa, e refletem a conjuntura do local e do momento. Porém eles não surgem todos juntos e com os mesmos significados que os conhecemos hoje.
No século XVIII, o termo civilização e cultura não eram usados na Europa, e civilidade era muito mais usado para destacar as pessoas com bons hábitos, diferentes dos bárbaros e selvagens, e para bárbaros ou selvagens você pode colocar, tudo, tudo mesmo que não fosse europeu. Essa ideia de civilidade era uma forma de distinção para os nobres, que eram comedidos, dominavam os modos e a aparência, logo a nobreza francesa elevou isso a um status maior, sendo depois, incorporado por outros estados, como o alemão por exemplo, que se espelhava em toda essa civilidade francesa, chegando ao ponto de usar o francês como língua oficial entre a nobreza, enquanto o alemão era usado para falar apenas entre os plebeus, e os burgueses alemães, que não pertenciam a nobreza refinada.
Enquanto a nobreza alemã adota os refinados hábitos franceses da civilidade,  pouco a pouco na França e Inglaterra o termo civilidade dá lugar ao termo civilização, que compreende os grandes feitos de um estado, como seus monumentos, obras, e grandes feitos políticos, muito mais ligado a uma ideia de progresso, muito mais ligado a um desenvolvimento material daquela sociedade.
Voltando para a Alemanha, a nobreza, cada vez mais distante de seus súditos, vai tendo esse antagonismo acentuado, onde até os intelectuais, estavam mais ligados aos burgueses sem civilidade. Nesse contexto movimentos buscam fortalecer os traços legitimamente alemães, assim surge a Kultur, muito mais ligado a ideia de realizações artísticas e intelectuais, e até religiosas, que antagonizam com a aristocracia afrancesada da Alemanha.
Com o iluminismo o termo civilização ganha força e universalidade, mas nas primeiras décadas do século XIX a ideia de civilização é diluída junto com os ideais nacionalistas de então, porém se mantém como uma solução a barbárie, que deve ser levada os povos menos desenvolvidos, assim muitas civilizações surgem, todas europeias, com poucas exceções. E nesse ponto começa a se fundir a ideia de civilização e kultur, e no fim o termo civilização assume as características de grandes feitos materiais de uma sociedade, quanto os aspectos culturais, como religiosidade, artes, obras intelectuais, promoção de um sujeito moralmente desenvolvido. Por fim a união dos feitos do coletivo refletido na materialidade, como os feitos individuais refletido na alta cultura.
Antes de seguirmos com a análise do meme vamos usar alguns conceitos da antropologia para nos ajudar. Afinal muito se falou de cultura (kultur, em alemão), afinal o que é cultura? Cultura pode ser definida como uma rede de significados compartilhados por um grupo de pessoas. A cultura é algo aprendido pelo individuo, ou seja, é herdado do coletivo. Cada cultura só pode ser devidamente compreendida dentro de sua própria cultura, não devemos nunca julgar uma cultura estando fora dela e inserido em outra. Pois os elementos daquela cultura só fazem sentido no contexto de sua própria cultura. Cultura não é algo estático, embora tenha certas culturas que sejam mais lentas para se modificarem, todas mudam e evoluem, e não podemos falar em cultura mais ou menos desenvolvida, num sentido de uma ser melhor que a outra, pois cada uma se desenvolve segundo suas necessidades. Toda vez que julgamos uma cultura estamos sendo etnocêntricos, assim como os europeus do século XIX, que postulavam que deveriam levar a civilização aos povos selvagens e bárbaros, e com isso promoveram um extermínio de pessoas e culturas inteiras pelo mundo.
Com isso, e por fim, podemos dizer que conceitos como civilização, selvagem e bárbaros, são conceitos forjados em um local restrito, no caso a Europa, entre os séculos XVIII e XIX, carregados de uma visão eurocêntrica, que os colocavam como os guardiões, ou melhor, os colocavam como o motor do processo civilizatório, que deveria ser expandido pelo mundo, e isso resultou desastroso para muitos povos e culturas. E assim como o termo pré-história, toda vez que o tiramos da Europa e usamos em outro lugar e outros povos, temos de novo uma incompatibilidade de contextos, que serve muito mais a dominação e destruição, do que uma promoção do processo civilizatório almejado pelos conquistadores.
Assim podemos concluir que o meme, descrito acima reflete as consequências desse processo civilizatório, que desconsidera a realidade local, e desestabiliza, mais do que promove, uma sociedade mais justa e sadia.

Conclusão

Todo conceito tem uma história, e é muitas vezes polissêmico, senão sincronicamente, com certeza diacronicamente. Pois desde a primeira vez que se emprega um termo até determinado momento, ele passa por ressignificações, que devem ser entendidas para que possamos saber de fato o que significa. Outra característica dos conceitos abordados acima, é que do século XIX em diante, eles ganharam um destaque quanto sua polissemia, ultrapassaram as barreiras dos intelectuais ou da academia, e estão nos mais variados lugares, muitas vezes sendo usados com os mesmos significados, carregados de juízo de valor, dos séculos anteriores. Se queremos compreender um pouco melhor nossa realidade, se faz necessário repensar esses conceitos e seus usos.

Referências bibliográficas

MOURA, Caio. O advento dos conceitos de cultura e civilização, Unisinos, 2009.
AQUINO, Silvia Lima de. Considerações sobre o conceito de civilização em Nobert Elias, Revista Espaço Acadêmico, N 138, novembro de 2012.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Tempo e História.
SEDA, Paulo. Sociedades “sem história” antiga da América, Nucleas, Edição 3. Rio de Janeiro, 2010.

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